Capitulo 1 – Punkaste!

Capítulo 1

Era um sonho recorrente. Prédios, árvores e pessoas esticavam de tamanho, em fração de segundos, enquanto eu encolhia. Só o que crescia em mim era o desespero de não ser ouvido naquele mundo em distorção. Meus gritos ecoavam pelas pernas gigantes dos meus pais e irmãos, mas não alcançavam as orelhas parabólicas. O pior era perceber que não sentiam minha falta. Familiares, amigos e colegas não demonstravam preocupação com meu paradeiro, como se nunca tivesse existido um Richard Wygand em suas vidas.

Quando recordo da solidão que carregava no peito ao despertar do pesadelo, sinto profunda compaixão por aquele garoto assustado.

Ah, Rirou, meu brother! Como queria ter a possibilidade de voltar no tempo e te abraçar. Sentar-me ao seu lado e dizer que homem também chora e que você pode chorar quando tiver vontade. Eu ia te ensinar também que você pode falar o que sente e ouvir a música que te emocionar. Heavy metal, punk rock, reggae, samba. Não importa. Experimente todos os estilos, criança, era o que eu ia defender. Depois, te convidaria pra rodarmos de skate até que o sol encontrasse o mar do Rio de Janeiro.

Um encontro assim poderia afastar de vez aquele sonho ruim do quarto solitário do apê no Cosme Velho, em Laranjeiras, onde vivi minha infância e pré-adolescência como temporão de um trio de meninos enérgicos, filhos de um casamento que teve fim quando eu tinha 3 anos de idade.

Morávamos com minha mãe e nossos avós em um condomínio de classe média que ficava a dois quilômetros do Cristo Redentor, um símbolo de fé parecido com os gigantes que abafavam meus pedidos de socorro durante o sono.

Demorei décadas pra perceber que acordar daquele pesadelo não significava alívio. Minha voz também não encontrava ouvidos atentos no mundo real e, assim como no sonho, fui me encolhendo até me tornar uma criança introvertida, depressiva, com compulsão alimentar e rompantes de agressividade.

Na primeira briga no colégio, lembro que saí chorando. Meus colegas não entenderam nada, porque eu tinha batido no garoto. O desentendimento começou com uma trombada de futebol, gatilho pra extravasar a masculinidade tóxica que muitos hominhos carregam. O menino me xingou, eu retruquei, e ele tentou me chutar. Como já apanhava em casa de dois bem maiores do que eu, consegui me defender. Reagi por reflexo, segurei a perna, passei uma rasteira na outra, de apoio, e meu colega caiu de costas, ficando sem ar. A gente ainda se agarrou no chão e comecei a dar uma sequência de socos nele, ao mesmo tempo em que desaguava em choro.

Eu chorava muito até os 7 anos de idade. Qualquer mudança na energia de um lugar ou no humor de uma pessoa era suficiente para apertar minha gargante. Logo, grossas lágrimas corriam pelo rosto.

Meus irmãos, os amigos deles e os meus próprios tiravam sarro quando eu reagia chorando a um desentendimento no parquinho ou por sofrer com uma brincadeira estúpida. Lembro de cantarem “Boys Don’t Cry”, do The Cure, e rirem na minha cara.

Como qualquer criança faria, eu corria para o adulto mais próximo que pudesse me proteger e consolar daquele aperto que trazia no peito. Mas os gigantes não pareciam ouvir o pequeno e preferiam ignorar o que se passava comigo. Assim, de tanto ouvir que eu já era grandinho e que menino não devia chorar, acabei aprendendo a engolir o pranto e esconder meus sentimentos.

Ah, Rirou, meu brother! Não precisava ter sido assim. Homem chora, sim, e faz muito bem chorar, viu?

Várias gerações de garotos foram fabricados por essa forma violenta de se relacionar consigo, com os outros e com o meio onde se vive. O resultado foram bilhões de homens inseguros, frustrados, depressivos, infelizes e destrutivos.

Após 33 anos e milhares de quilômetros percorridos, depois de inúmeras sessões de terapia, de todos os tipos, e de me encontrar com seres maravilhosos que me permitiram conquistar a liberdade de desfrutar meus prazeres sem censura, posso dizer que estou mais perto da cura do que jamais imaginou o pequeno Richard Wygand, tão assustado em seu mundo de gigantes opressores.

Naquele improvável encontro, além de consolá-lo do sonho ruim, eu mostraria que a versão Rirou 2020 cresceu o suficiente para encarar os monstros internos e externos. Tenho certeza que ele ficaria orgulhoso em saber que se tornaria no futuro um homem, esposo e pai realizado.

Essa volta no tempo seria tão incrível e importante que eu não hesitaria em contar-lhe que agora estamos fortes o suficiente para declararmos guerra contra a maior desumanizadora das criações humanas: a Igreja Católica Apostólica Romana.

Sim, pois não culpo meus pais ou avós, nem nenhum adulto que tenha contribuído com a minha formação. Minha mãe, coitada, recém divorciada, tentando retornar ao mercado de trabalho, sem tempo de vigiar três marmanjos. Naquele caos, dizer que homem não chora era a maneira mais fácil de criar em mim uma casca para aguentar o mundo lá fora.

O problema é que lá fora estava uma sociedade fundamentada em princípios religiosos, envenenada por verdades limitantes sobre o que é certo e errado e ignorante o suficiente para ameaçar crianças ao inferno só por não seguirem à risca os padrões morais cristãos.

Engolir o choro foi a primeira armadura que me vestiram para lidar com o mundo de gigantes reais, mas ninguém me protegeu para absorver os dedos em riste em minha direção que me julgavam um menino mal por ouvir heavy metal, punk rock ou andar de skate.

Eu tinha oito anos quando escutei de um amigo do meu irmão que o pôster de um morto-vivo do Slayer, que ele tinha no quarto, era o atestado de que o juízo final não seria fácil pra nós, amantes de rock’n roll.

“Vocês ficam ouvindo essas músicas do diabo, saibam que Jesus vai voltar com um trem, pegar quem acredita nele, e queimar todo o resto”, foi o que ele disse.

Para quem gostava do estilo, como nós três de casa, ouvir aquela sentença me causou muito medo. Aquele menino sabia de algo que eu não sabia. Podia ter razão, sei lá.  

Sem poder chorar e com pavor de sofrer o julgamento alheio por ser quem eu queria ser, acabei me retraindo até merecer tapinhas de bom moço na cabeça.
 
A recompensa vinha em calorias. Devorava toda a comida que via pela frente. Meio pacote de pão branco com mel ou catchup era um lanche comum nas minhas tardes. Nas festinhas de aniversário, ninguém superava minha conta no número de cachorros-quentes.

Acima do peso, aos 7 anos de idade, tornei-me um garoto que sabia que era uma pessoa boa, mas que se anestesiava com sódio e açúcar para adormecer sem medos e culpas. O pior é que nada disso me livrava de encontrar em pesadelo com os gigantes e a solidão.

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